Eu posso ser o Seu Demônio.

A Bailarina me disse que a Briza disse a ela: "Escrever é desenhar o que se sente..." A Briza estava certa!

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Location: Recife, PE

Wednesday, January 24, 2007

Olhos estranhos

Valdemar parou em uma barraca de coco, de fronte a casa da cultura. Ainda eram 4:15 e ele não tinha pressa de chegar em casa naquele dia.
O Recife se apresentava bem vestido naquela tarde de Janeiro; de céu azul e brisa fresca, que em dias raros como aquele não se podia perder a chance de contemplar.
Valdemar caminhou até o pátio centenário e sentou-se em um banco vazio, com vista privilegiada para a Estação central. Era bonita de se ver. Por entre as árvores se via a cúpula proeminente no teto e nas extremidades os gigantescos gárgulas, esculpidos em metal com muito esmero.
O tempo parecia parado enquanto ele apreciava tão bela arquitetura e a certeza lhe caiu sobre o colo quando reparou no relógio da fachada e lá viu: 4:15. Valdemar admirou-se, desta vez mais do que quando só admirava, mas o que se há de fazer? Era só um relógio parado numa hora particularmente familiar.
Então esqueceu-se do tempo e decidiu olhar em volta, mas não foi preciso ir muito longe com seus olhos para outra vez admirar. Sentada num outro banco, ali adiante, estava ela. De pele branca e vestido lilás; De olhos azuis e cabelos longos e louros. Belíssima, tomando um coco.
Perdido em pensamentos, Valdemar se encheu de encanto e de interrogações. Perguntou-se diversas coisas, curioso por saber seu nome, de onde vinha, se já havia amado alguma vez e até se era ela de fato brasileira. Pois a moça levava consigo um ar, digamos, estrangeiro, principalmente em seu modo de olhar para as coisas.
Ainda as 4:15, no relógio da estação, a moça o fitou com aqueles olhos estranhos, levantou-se e seguiu, a caminho do metrô. Valdemar, hipnotizado, levantou-se logo e seguiu os passos pequeninos da mocinha de lilás.
Quando se deu conta, ele já havia passado a roleta e estava subindo as escadas, de encontro à plataforma. Ela seguia, a passos curtos, bem a sua frente e ele, a cada passo dela, sentia-se mais seguro em prosseguir.
Enquanto esperava o trem, Valdemar preferiu ser discreto. Tímido que era camuflou-se entre as pessoas e manteve-se distante, mas sem perdê-la de vista. Por mais que se escondesse a mocinha sempre o encontrava com o olhar e isso o fazia sentir um misto de prazer e de medo.
O trem alinhou-se na estação e os vagões abriram suas portas. Valdemar estava parado no fim da plataforma, mais perto do último vagão, onde sempre entrava menos gente. Ele a viu entrar e só depois embarcou também, junto com meia dúzia de pessoas as quais ele nem enxergava.
O vagão não ficou cheio, agora ficava mais difícil camuflar-se. Ela já havia escolhido uma cadeira na janela e ele escolheu um lugar que lhe parecia estratégico. De onde estava podia observa-la fingindo olhar a paisagem que passava do lado de fora. Paisagem esta que em dias comuns já não lhe enchia os olhos e hoje, menos ainda.
O trem seguia a toda, cruzando o subúrbio recifense. Valdemar fitava a mocinha, que mirava seus olhos estranhos para fora da janela, parecendo fotografar tudo o que passava por ela.
Valdemar penetrava cada vez mais naquele olhar e de tanto penetrar, viu-se como parte dele. Imaginou-se caminhando ao lado daquela pequena e sentiu-se até bem feliz ao ver que aqueles olhos também olhavam pra ele.
O mundo parou. O trem também. O maquinista anunciou a chegada na estação Ipiranga e acordou Valdemar de seu devaneio encantado. Ele voltou seus olhos novamente para onde não deveria ter desviado e ela continuava lá. Então a viagem prosseguiu e ele voltou a contemplar aquela beleza. Em nenhum momento Valdemar refletiu sobre o destino daquela viagem, ele apenas seguiu, como um trem desgovernado, com destino a lugar nenhum.
O medo não habitava mais o seu coração, sentia-se satisfeito em apenas olha-la e isso era o máximo que poderia sentir.
Novamente o trem parou. Veio o anuncio da estação de Sta. Luzia. As portas se abriram e a mocinha levantou-se delicadamente. Valdemar foi tomado pelo pânico, ele não sabia se seguia com ela ainda mais além ou se retornava satisfeito, com as lembranças da mocinha de lilás. Ela passou e lhe olhou nos olhos, como se fosse um sinal e como se não fosse o bastante, revelou a flor do seu sorriso.
Valdemar extasiou-se e só voltou a si quando viu as portas do vagão fechando-se, a fim de seguir viagem. Ele saltou atordoado e se deparou com a multidão frenética que descia a escadaria de encontro à rua. Sem pensar, ele desceu as escadas esbarrando nas outras pessoas que seguiam alheias ao seu drama.
De nada adiantou a pressa em chegar até a rua. Valdemar caiu de joelhos na calçada, se perguntando como aquela mocinha de passos curtos pode sumir diante dos seus olhos com tamanha destreza. Desolado, caminhou penosamente até o outro lado da estação, sentindo um vazio inexplicável em seu peito. O jeito agora era tomar o caminho de volta e pensar com força em sua pequena de olhos estranhos.
Não eram mais 4:15. A noite tingia o céu de negro e o recife já não estava mais tão bem vestido, quando no horizonte surgiram os faróis do trem que o levaria de volta à estação central. Valdemar agora só aguardava a hora da partida. Uma lágrima escorreu em seu rosto pálido e antes do trem completar o seu destino, Valdemar decidiu o seu. Deixou-se cair sobre os trilhos e esperou a sua vida se esvair. Como Ela.







Ao invés da dor, só a escuridão. Valdemar não entendeu muito bem o desfecho de sua estória. Sentia-se vivo, porém paralisado e cego. Tentou mover-se sem sucesso. Tentou abrir seus olhos, também em vão. Em fim, para sua surpresa, acordou no meio da praça Maciel Pinheiro, sentado no chão, em frente ao chafariz, vestido em farrapos e morto de fome.
O mendigo bestificou-se com o seu sonho. Isso mesmo, mendigo. Essa era a realidade depois de todo o torpor. Segurando em sua mão estava Ela. A mocinha de lilás tinha os mesmos olhos, mas ao invés do belo vestido e dos cabelos louros ao vento, ela trajava o hábito negro de freira e dizia ao mendigo:

_ Deus te proteja.

Só isso foi dito e o mendigo Valdemar entendeu tudo. A freira de olhos estranhos cruzou a rua e se foi, sentido Boa Vista.
Ele chorou porque sonhou o impossível e jurou nunca mais amar outra pessoa. Nem mesmo em sonhos.